Prefácio por Eliane Gonçalves
Vim ao mundo pelas mãos competentes de uma parteira, Dona Lica, a quem minha mãe e meu pai veneravam por sua força e integridade. Deram-me o nome de Eliane que, com o tempo, virou Li, Lili, Lica, Lilica. Uma homenagem imprevista e que agora, ao rememorar as histórias que ouvi sobre meu nascimento, faz todo o sentido. Nos idos de 1962, no interior de Goiás, era pouco provável que uma mulher fora dos círculos da classe dominante desse à luz com assistência médica e menos provável ainda, no ambiente asséptico de uma maternidade. Caçula de onze rebentos, dos quais nove vivos e saudáveis, eu, como toda a prole, nasci em casa, na presença metodicamente distante de meu pai e irmãs/irmãos mais velhos. Por toda uma vida, ouvi relatos sobre partos assistidos em casa, sobre mulheres que se ajudavam na partilha de conhecimentos e cuidados. O cheiro e o gosto de canja de galinha oferecida às puérperas quando eu ainda era uma criança é um simbolismo que está retido na imaginação que tenho de um “resguardo”. E junto com a canja, um punhado de tabus…
Sem pretender idealizar ou romantizar o parto que, certamente, foi causador de muitas perdas e dores, inclusive maternas, faço questão de salientar as boas experiências que dão o tom contra as tragédias evitáveis das violências cometidas sobre os corpos e a subjetividade das mulheres grávidas em todas as partes do mundo e, de forma muito aguda, no Brasil, o que se convencionou chamar de Violência Obstétrica. A própria nomeação é fruto de uma longa trajetória que principia com os estudos sobre morte materna, até as discussões sobre, e implementação das, políticas de humanização do parto e do nascimento.
É disso que trata este livro. Maíra, observadora atenta, pesquisadora engajada, na melhor acepção de uma sociologia feminista, empreendeu uma jornada iniciada em 2014, quando sua primogênita, Anahí, era ainda uma bebê de colo. Movida, em parte, por sua própria experiência com um parto hospitalar desrespeitoso, mas também profundamente afetada pela aproximação com mulheres indígenas e seus modos de vida – cuja histórica vivência de partos não hospitalares se encontra ameaçada pela prática dominante –, Maíra deu início ao doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás sob minha orientação. Ao longo de 60 meses – prazo ampliado em decorrência da licença maternidade de sua segunda gestação e de mudanças de residência –, acompanhei os desdobramentos de uma pesquisa que é, de longe, muito mais ampla do que o conteúdo da tese, agora publicada em livro. Aliado a uma pesquisa documental e bibliográfica rigorosa, o trabalho que ora temos a oportunidade de ler é sólido, robusto e muito relevante para as Ciências Sociais brasileiras. Maíra realizou um extensivo trabalho de campo, mas, como estava imersa em alguns deles (enquanto ativista, educadora e até mesmo doula!), deixou de registrar um montante considerável de observações e intervenções. Felizmente, uma reviravolta – a gravidez, o parto e o nascimento de sua segunda filha, Moara Luz – possibilitou o registro autoetnográfico que ilumina o último e, talvez, mais importante, capítulo deste livro. Com esta experiência vivida e, certamente, imprevista em 2014, Maíra empreende uma gestalt, um percurso de volta a si mesma para realizar um desejo e restaurar sua profunda convicção de que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres passam, necessariamente, por suas escolhas e que, se essas não se encontram asseguradas por políticas de saúde adequadas e de alcance universal, elas se tornam alvo de procedimentos violentos que, conforme defende, não são outra coisa que misoginia. Além de doutora em Sociologia, Maíra Soares Ferreira é também psicanalista, educadora e escritora. Vivendo em Guaratinguetá, sua cidade natal no interior de São Paulo, continua travando suas batalhas em favor das meninas e das mulheres. Espero que a leitura de seu livro encoraje outras pessoas a levarem adiante suas demandas em prol de uma maternidade elegida, de um nascimento mais seguro e livre de coerção e violência. E que não seja num futuro próximo, mas aqui e agora, o lugar da autonomia das mulheres sobre seus corpos e seus desejos.
Eliane Gonçalves
Goiânia, março de 2021